O "Natal" de Miguel Torga



Natal                      

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra.



A necessidade levara -o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior.



Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os



horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre- nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.



E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe



custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga,



não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.



O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado.



Setenta e cinco anos., parecendo que não, são um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata- cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se 58 fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada!



Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-lhe lá.



E caía, o algodão em ramal Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos



Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo



assim, adeus noite de Natal em Lourosa...



Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!



Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.



Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!



Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.



Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro.



Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora.



O diabo era arranjar lenha.



Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se.



Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.



Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.



Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.



Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.



-Boas festas!



-desejou



-lhe então, a sorrir também.



Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho.



O larila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.



Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava



qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?



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Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada



a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida? A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.



E o Garrinchas., diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na e trouxe-a para junto da fogueira.



Consoamos aqui os três -disse, com a pureza e a ironia dum patriarca.



-A senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

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